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Dario de bordo de Mkfelippe

Maisa Gomes capacita agentes para ver violência na vítima que não pode nomeá-la

Toda vez que uma mulher entra no serviço público com queixas confusas e o agente de saúde percebe que a paciente foi vítima de violência, ele é obrigado a notificar o caso. Com base no que os dados revelam, o poder público estabelece políticas e ações para atender o problema específico daquela localidade. Mas se há descaso do médico, dentista, psicólogo, assistente social ou nutricionista, não só a paciente estará desamparada como as agressões de gênero continuarão sendo epidemia nacional. Maisa Moreira Gomes, 49 anos, psicóloga tem feito uma verdadeira cruzada em Belém para evitar que isso aconteça. Funcionária da Secretaria Municipal de Saúde da capital do Pará há 10 anos, ela prepara os profissionais para o atendimento. A base é a escuta empática para identificar as agressões.

Maísa Gomes, finalista na categoria Saúde (Foto: Marie Claire)

 

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“As mulheres têm muita vergonha de contar que foram estupradas na rua, em uma festa ou que apanharam em casa. Mas é possível notar isso porque o corpo delas conta, mesmo que não haja marcas,” diz Maisa, finalista na categoria Saúde. “Quando uma mulher procura o nutricionista querendo emagrecer é preciso entender as razões que a levaram a desenvolver, por exemplo, uma compulsão por comida”, explica. “Se o profissional estabelece um bom contato e inspira confiança, vai acabar descobrindo que a paciente vive situação estressante, é assediada no trabalho ou sofre algum tipo de violência sexual.” Para a psicóloga, bulimina não é só bulimia. “Pode ser o desdobramento de algo traumático que a paciente sofreu na infância ou em algum momento da vida”.  Assim também como o baixo peso, em geral, indica desconfortos emocionais ou sociais.

A orientação dela é avaliar o fator estressor também no consultório de odontologia. Analisando a ferida na boca de uma menina, o dentista descobriu tratar-se de HPV. Ela era submetida a sexo oral em casa. “Não adiantaria apenas tratar a doença. Aquela criança necessitava de amparo emocional, de segurança, e a sua mãe, de orientação e encaminhamento”, lembra a psicóloga nascida no Rio de Janeiro, especializada em terapia de família e em psicopedagogia.

Em outra situação, uma mulher surgiu sem dente. O dentista conseguiu levá-la a abrir o episódio: tinha sofrido um ataque do marido algum tempo atrás. Os profissionais tornaram-se mais atentos também com deslocamentos do maxilar e ferimentos na língua. “Os agressores batem sobretudo no rosto. Pretendem estragar o sorriso da mulher, tirá-la da convivência com a sociedade”, observa Maisa.

Contra a violência doméstica não existe vacina. Mas tem prevenção. Para criar os melhores programas é preciso, antes, conhecer os problemas. Insisto na capacitação dos agentes de saúde pública porque são eles que recebem as vítimas. Não podem fechar os olhos e os ouvidos para as agressões que elas querem nos contar, mas não conseguem
Maisa Gomes

“Estamos tentando atingir mais especialmente os pediatras e os ginecologistas, que precisam saber se a gravidez, de adolescente ou adulta, foi fruto de um estupro”, lembra. “Eles têm o contato mais direto com as mulheres e podem ainda detectar impasses, como a recusa dela em realizar o exame de colo de útero”, diz. Como o sexo tem de ser evitado três dias antes, o marido proíbe a esposa de fazer a colposcopia. “Quer que a mulher lhe sirva na cama todas as noites.” Em situações como esses, os profissionais devem mencionar os direitos que a mulher tem à saúde, à sexualidade, à decisão de reproduzir ou não e de se preservar quando não deseja manter relações sexuais.

A abordagem nas tentativas de suicídio entrou no protocolo. Interessa aos agentes as razões que levam ao desejo de morrer. A obrigação pararia na notificação ao Ministério da Saúde. “Mas, analisando os números, vemos que a tentativa é muito mais comum entre as mulheres e as trans.” Para Maisa, é mais um indicativo da opressão de gênero, da desigualdade, da sobrecarga sobre os ombros femininos. Em Belém, de janeiro a agosto deste ano, lesões autoprovocadas foram encontradas em 19 homens e em 53 mulheres. Das histórias que recolhe e das vivências que os agentes relatam, a psicóloga tira os temas das palestras que dá a colegas da rede e à comunidade.

Mas não é sempre fácil contar com o engajamento dos profissionais. Eles demonstram resistências iniciais. “Há grandes parceiros. E também agentes acostumados a agir dentro da caixinha. Acham que problema emocional e só com o psicólogo. Ou que o atendimento mais demorado e detalhado acarretará muito trabalho”, releva. Maísa tenta quebrar a oposição ressaltando a diferença que farão na vida das meninas, das mulheres e dos filhos delas. Lembra que com a atenção ampla, cumprirão seu verdadeiro papel: promover saúde e prevenir demandas mais onerosas para a rede de saúde e a sociedade. No empenho para atingir o objetivo, estabelece interlocução com os setores que precisam se conectar. Entre eles, Centos de Referência da Assistência Social (CRAS), delegacias de polícia, Ministério Público e organizações civis. “A vítima de violência doméstica muitas vezes precisa de bolsa família, creche para os filhos, oportunidade de trabalho, medidas protetivas e até um abrigo, se ela corre risco de feminicídio”, afirma. 

Maisa crê que o combate à violência de gênero não pode ser pautado em suposições. A importância da notificação, que a psicóloga repete como mantra, está no retrato que revela. Em setembro, a Folha de S. Paulo divulgou dados do Ministério da Saúde, com base nos registros feitos por agentes de saúde do país. O que os profissionais apontaram ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação permitiu calcular que a cada quatro minutos uma brasileira é agredida por um homem e sobrevive. A reportagem analisou 1,4 milhão de notificações entre 2014 e 2018, excluídos os números de assassinadas. E concluiu que, apesar do aumento de denúncias de violência física, psicológica, patrimonial e sexual, há também alto índice de subnotificação, o que significa que a quantidade de agressões pode ser muito maior. Isso demonstra que a luta de Maisa é mais do que bem-vinda. 

O impacto de Maisa
Quando Maisa começou o trabalho em 2009, os profissionais de saúde notificaram, em Belém, 651 casos de violência interpessoal (onde se inclui a de gênero) e autoprovocada (tentativa de suicídio). Com a capacitação que ela oferece, os apontamentos vêm crescendo e, em 2018 chegaram a 1.681 ocorrências, o que possibilitou atender melhor as vítimas. Para isso, ela tem ampliado o treinamento de profissionais. Em 2017, foram preparados 220 agentes; em 2019, só até agosto 197 já haviam passado pelo processo.

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